Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Retórica deprimente

por Carla Hilário Quevedo, em 23.11.14

Loja de Porcelana CHQ 22-11-14

App Hipstamatic com lente Jimmy e rolo Ina's 1982

 

Há uma coisa que todos sabemos sobre galinhas dos ovos de ouro: a história acaba mal. Mesmo com diferentes versões, a fábula de Esopo é clara na sua moral. Quem tudo quer, tudo perde, e outras evidências do género. Por isso, sempre que ouço falar de uma galinha dos ovos de ouro que alguém terá descoberto na sua vida, antecipo o pior desfecho para a aventura. A fábula sobre um camponês ou de um casal de camponeses, depende das versões, que um dia percebe que uma das suas galinhas punha ovos de ouro, acaba com a ideia mirabolante de matar o animal para ver se teria ouro dentro dela, já que o produzia daquela forma. A ganância é castigada: sem galinha não há ovos.

 

A galinha dos ovos de ouro é, por isso, um símbolo do que não se quer ter e não da sorte de se ter encontrado uma forma fácil de enriquecer. Não podemos ficar só com uma parte da história, ignorando o resto, que lhe confere um sentido moral. A galinha dos ovos de ouro é uma galinha morta a prazo. Não existe uma ideia sem a seguinte nesta história que perdura há séculos.

 

Falo desta fábula a propósito de declarações recentes do vice-primeiro ministro Paulo Portas sobre as intenções do Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, de cobrar taxas de entrada e dormida aos turistas que inocentemente visitam a cidade: “Acho que devo deixar um alerta: não matem a galinha dos ovos de ouro fazendo, ao mesmo tempo, taxas para dormir, taxas para aterrar e taxas para desembarcar”, disse numa conferência no Porto. A analogia tem aquele problema que referi: não existe uma galinha dos ovos de ouro eterna. Está na natureza da história, e no modo como lidamos com galinhas que põem ovos de ouro, que a fonte de riqueza termine de repente por nossa directa intervenção. Ou seja, é má notícia que o turismo, um dos sectores em que se nota uma evolução muito consistente, graças ao trabalho, ao esforço e à dedicação das pessoas, governantes e profissionais, seja afinal visto como uma galinha valiosa cujo destino dramático está escrito.

 

António Costa respondeu assim: “Ao contrário do que o Governo pensa no caso do turismo, as galinhas, mesmo as de ovos de ouro, não nascem de geração espontânea, mas é preciso pôr o ovo – e para pôr o ovo é preciso trabalho. Por isso, o Município de Lisboa tem investido na criação da galinha dos ovos de ouro”. A resposta é deprimente e serve para nos mostrar o que podemos esperar das capacidades retóricas de António Costa. O método que usa é o de esticar a analogia até se tornar definitivamente absurda. No fim vale tudo, até estar de acordo com o que disse Paulo Portas. Costa teve a intuição de atacar a ideia de que tudo é fácil e de criação espontânea, mas ao mesmo tempo não se atreveu a abandonar a imagem tão apelativa da galinha dos ovos de ouro como fonte de riqueza natural, como se fosse parecido a encontrar petróleo no Beato.  

 

Cada vez mais me parece que António Costa, no caso de vencer as eleições, fará de Passos Coelho um retórico exímio, um mago das palavras, um Cícero.

 

Publicado na edição de fim-de-semana do i, 22/23-11-14

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 19:44