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Pessoas não humanas

por Carla Hilário Quevedo, em 29.12.14

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O típico defensor dos direitos dos animais está desiludido com a espécie humana a que pertence. Não estou a falar de si, como é óbvio, nem de mim, só de uma ideia que se faz a partir de pessoas que conhecemos, que adoram os seus bichos mas que aos três minutos de conversa com um conhecido já estão a imaginar que bom seria um mundo em que certas pessoas não existissem. O defensor dos direitos dos animais que não gosta dos humanos porque desiludem, traem, mentem é para mim alguém que defende o que está certo pelas razões erradas. Talvez há uns anos isto fosse um problema para o meu temperamento intransigente. Hoje em dia não é. Não se trata de os fins justificarem os meios, mas de os meios nem sempre serem assim tão condenáveis. Além do mais, tenho compaixão por quem não é capaz de lidar com criaturas da sua espécie. A vida é mais fácil com um cão.

 

A vida é em geral mais fácil com o que não responde, como livros, gatos ou, até há poucas décadas, mulheres. O que não reage não nos faz sofrer nem provoca conflito. Permite pelo contrário que nunca haja desmentidos a respeito do que pensamos sobre o que nada diz. Mas defender que os animais não humanos possam ter direitos por razões egoístas, de vontade de controlo sobre outras espécies, porque são pessoas na medida em que lhes atribuímos certas características parecidas com as nossas, não é justo, apesar de a intenção ser encontrar um equilíbrio entre aquilo que é diferente.

 

Apesar dos radicalismos que tornam a causa pouco compreensível para muitas pessoas, a defesa dos direitos dos animais deve ser um tema crucial para os que não se colocam no centro da existência no mundo. Também para os que entendem que os humanos partilham com os que não são uma condição animal que não pode ser esquecida. E se somos racionais, então isso significa que só os humanos podem ser irracionais, apesar de os não humanos não terem a capacidade de aprender, de se lembrar, de se reconhecerem. Partilhamos ainda a fragilidade, a vulnerabilidade, a dependência. São razões mais que suficientes para defender que os animais não humanos têm direitos.

 

Um tribunal na Argentina partilha das minhas convicções e decidiu na semana passada que um orangotango fêmea tem direito a passar o resto da sua vida ao ar livre e não num jardim zoológico, onde vive há mais de duas décadas. Tive a oportunidade de ver o orangotango Sandra numa viagem a Buenos Aires e fiquei impressionada com o animal, que na altura podia ser visto dentro de uma cela de vidro. Estava isolada porque estava doente, quem sabe se já de stress por ser a única da sua espécie mantida em cativeiro. Os activistas dos direitos dos animais apresentaram um pedido de habeas corpus, ou libertação imediata, para Sandra, por considerarem que o animal é uma pessoa não humana. O tribunal aceitou os argumentos. O zoo tem dez dias para apelar da decisão.

 

Se tudo correr bem, Sandra não passará o resto dos seus dias numa floresta da Sumatra, de onde é originária (embora tenha nascido em cativeiro, num zoo alemão). Passará o tempo de vida que lhe resta num ambiente protegido de um parque natural, talvez no Brasil. Se a decisão correcta for confirmada, será uma boa notícia para os que defendem que o direito a viver em paz transcende a humanidade.

 

Publicado na edição de hoje do i

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publicado às 19:30