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por Carla Hilário Quevedo, em 21.01.04
Pesadelo De Post (ou As Minhas Desculpas Pelo Aborrecimento) - como se não fosse pouco, revisto e aumentado.



O Abrupto publicou há dias um poema de Konstandinos Kavafis, intitulado Mar da Manhã. Com o original em grego postou também uma tradução do Roger Sulis. Eu disse que não gostei da tradução e como entrei numa fase irreversível (um contrasenso?) de acreditar que os gostos se discutem, passo então a dissecar o poeminha (sugnómi, Kavafi, agapi mou) e a mostrar que gosto mais da tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis porque me parece mais próxima do original e, para mim, melhor.



ΘΑΛΑΣΣΑ ΤΟΥ ΠΡΩΙΟΥ

[Aqui não há nada que enganar: thalassa está no caso nominativo e significa mar (pensem em talassoterapia) e tou proiou está no genitivo, um caso que existe em grego e noutras línguas como o alemão e que indica posse. Os casos em que se encontram as palavras definem a sua posição na frase (que neste caso é o mesmo) e assim temos mar da manhã. Mas não temos mar pela manhã, como já li algures. Aqui não há nenhuma preposição.]



Εδώ ας σταθώ. Κι ας δω κ' εγώ την φύσι λίγο.

[Εδώ significa aqui e ας σταθώ está num tempo estranho que se chama protreptikó (porque é que disseste optativo, Roger? Será um arcaismo em Kavafis? Talvez, mas a tradução do optativo é então mesmo pelo conjuntivo independente) e que é um tempo que exprime desejo e exortação, daí me parecer mais interessante traduzi-lo pelo conjuntivo independente, uma vez que este exprime um anelo; um desejo ardente por algo. Que eu me detenha aqui parece-me então uma opção melhor do que hei-de deter-me aqui, precisamente pelo grau de certeza que implica. "Que eu faça" não é a mesma coisa que "hei-de fazer". Na segunda frase, há uma intenção forte de fazer, na primeira um desejo grande de fazer. O tom também me parece importante: que eu me detenha é pacífico, quase pede um "Deus queira" atrás porque não depende de mim. Pelo contrário no "hei-de deter-me" vejo um dedo em riste e quase pede um "contra tudo e contra todos". É diferente. Se optamos pelo conjuntivo independente como tradução, então teremos de continuar assim e traduzir as thó por "que eu veja". Aqui prefiro também o verbo ver (δω de vlépo) ao contemplar utilizado por Sulis. A tradução a Κι ας δω κ' εγώ την φύσι λίγο é literal em JMM e NP: "E que também eu veja um pouco a natureza".]



Θάλασσας του πρωιού κι ανέφελου ουρανού

[Esta frase está toda no genitivo o que leva à tradução "de um mar da manhã e de um cáu sem nuvens". Compreendo a tradução de Sulis porque realmente o artigo indefinido não está lá. Mas será sempre o mar o da manhã e veremos sempre o céu sem nuvens? Além de o título do poema não ser "o mar da manhã". Não é sempre o mesmo mar; é aquele daquela manhã - um mar qualquer de uma manhã qualquer - que interessa.]



λαμπρά μαβιά, και κίτρινη όχθη, όλα

[Percebo o recurso à muleta da palavra "cores" na tradução de JMM. Parece que falta alguma coisa em λαμπρά μαβιά (roxos brilhantes - mávi pode ser roxo, púrpura ou talvez aquele tom mais acastanhado quase bordeaux, mas não azul. Suponho que seja o resultado da mistura entre a margem amarela e o céu azul sem nuvens. Não podemos esquecer que é de manhã. Ora όλα (neutro, plural - significa tudo) concordará com os adjectivos que se seguem.]



ωραία και μεγάλα φωτισμένα.

[Tudo, dizia, belo (ωραία) e grande (μεγάλα) iluminado (φωτισμένα). Sulis propoe que se trate μεγάλα como advérbio de modo. É possível porque os advérbios de modo e os adjectivos neutros neutros plurais têm a mesma terminação. Mas grandiosamente não me parece bem. Não serão o céu e o mar suficientemente grandes? Na verdade entendo a frase desta maneira: όλα φωτισμένα, ωραία και μεγάλα. Ou seja, tudo iluminado, belo e grande.]



Εδώ ας σταθώ. Κι ας γελασθώ πως βλέπω αυτά

[Já expliquei a tradução da primeira frase em cima. A tradução da frase Κι ας γελασθώ πως βλέπω αυτά parece-me mais bem conseguida por JMM e NP. Mais uma vez, trata-se de uma interpretação à letra: "e que me engane para ver isto". A palavra πως é a preposição para e αυτά significa isto; ou seja, isto tudo belo, iluminado e grande.]



(τα είδ' αλήθεια μια στιγμή σαν πρωτοστάθηκα)

[Aqui prefiro a tradução de JMM e de NP por uma questão que diz respeito aos diferentes usos da língua portuguesa em Portugal e no Brasil. JMM e NP insistem na palavra isto porque τα é o artigo definido neutro plural que concorda com o όλα (tudo) que vem lá de trás e o belo e o grande e o iluminado; isto que aqui vejo.]



κι όχι κ' εδώ τες φαντασίες μου,

[A frase anterior estava entre parêntesis, o que significa que teremos de voltar um nadinha atrás. Tínhamos "e que me engane para ver isto" (isto do céu e do mar e da natureza etc.) "e não aqui também os meus devaneios". Aqui percebo a tradução "fantasias" de Sulis, embora me pareça que "devaneios" seja mais neutro. As fantasias estão muitas vezes ligadas à sexualidade e não me parece que seja esse, aqui, o caso.]



τες αναμνήσεις μου, τα ινδάλματα της ηδονής.

[A frase continua com o acusativo τες (complemento directo), como em cima e parece-me pacífico: "as minhas recordações". Mas o que se segue já não. Prefiro como traduço, "as ilusões do prazer", que não está nem numa nem na outra tradção. Se bem que volúpia não é mal pensado. A palavra ηδονή é uma daquelas que mete respeito. Estão a ver "hedonismo"? Pois lá está. Prazer, em grego que os gregos saibam é euxarístisis. Esta palavra entra numa competição mais avançada. Volúpia tem o significado de "prazer dos sentidos"; um significado mais "físico" e que, aqui sim, faz sentido.]



E pronto. Que me desculpe o Roger Sulis (desejo ardente, conjuntivo e coisa e tal) por ter sido um pouco seca e infantil. É que é sempre mais fácil recusar alguma coisa que não nos parece boa ou certa (ou ambas que talvez sejam a mesma) sem explicarmos porque achamos isso. Quanto ao Jorge de Sena e à Marguerite Yourcenar e... olhem, tenham pena de mim.



[O Absorto e o Quartzo, Feldspato e Mica também se referem a este poema de Kavafis.]

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publicado às 11:06