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App PictureShow com filtro BlueGel e moldura 135 Slide, sobre O Mágico, de Hieronymus Bosch, 1475-80.
Tudo começou com as "gorduras" do Estado. Não estou certa de quando apareceu a designação, mas penso que a encontraremos no período imediatamente anterior à queda de Sócrates. O Estado teria peso a mais, o que, como sabemos, é inaceitável nos dias que correm. As ditas "gorduras" nunca foram definidas, e ficámos com a ideia de que estariam concentradas. O Estado estaria naquele ponto em que a chicha passara à desagradável badochice que havia que eliminar, mas com uma dieta ligeira e uns abdominais. Afinal as "gorduras" estavam espalhadas pelo corpo do Estado, das fundações aos salários, das PPP às pensões. Estamos num ponto da metáfora em que o Estado não há meio de emagrecer.
A relação entre a gordura e a doença nunca foi admitida, mas ela está presente nas ideias dos que entretanto insistem em explicar por outras palavras o descalabro em que se encontra o país. Manuela Ferreira Leite fez há dias uma das declarações mais descaradamente femininas de que há memória no discurso político em Portugal: "Concordo que é preciso emagrecer, mas aquilo que recomendo é que as pessoas não aceitassem morrer antes de emagrecer. Morrer gordo é do pior que há, especialmente depois de se fazer uma dieta tremenda." Diria mesmo que é um desconsolo. Está uma pessoa a pão e água durante meses e afinal morre um gordo impossível de enfiar no caixão. A analogia não é diferente de outra, também da autoria de Ferreira Leite, em Junho deste ano: "Andam a matar o doente pelo tratamento em vez de o deixarmos morrer pela doença." Ou seja, a morte é uma certeza. Resta saber como vamos viver até lá. Magros, de preferência.
A acrescentar a doenças e tratamentos, assuntos sobre os quais os portugueses nunca se cansam de falar, tivemos a introdução de variantes bélicas no discurso metafórico. Com a apresentação do Orçamento do Estado para 2013, apareceram as analogias militares, com António José Seguro a esclarecer a população de que se tratava de uma "bomba atómica fiscal". Pouco depois, Bagão Félix apresentava o detalhe de se tratar de "napalm fiscal". E não gostamos do cheiro de napalm fiscal logo pela manhã... Não satisfeito com a metáfora, Bagão Félix recorreu à geologia para nos fazer tremer. O OE será um "sismo fiscal", ou, no caso de não termos percebido, um "terramoto fiscal devastador". Ainda encantado com a metáfora bélica, Jorge Sampaio deu uma entrevista em que explicou que o novo OE "rebenta com tudo", e em que repetiu a palavra "rrrrebenta" de modo a ouvirmos bem o que nos vai acontecer. E porquê parar aqui? Porque não "impostos de destruição em massa", "gaseamento dos contribuintes", "drones fiscais contra os reformados"?
Perante o descontrolo notório no uso das metáforas no discurso económico, político e astrológico em geral, recomendo uma utilização menos dramática das imagens. O economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, afirmou que a redução do défice fiscal "é uma maratona e não um sprint". Ah, chegámos por fim à civilização das analogias desportivas. Sigamos o Sr. Blanchard e não deixemos que Portugal veja o cartão vermelho, que os portugueses sejam apanhados nas malhas do doping, nem nas regras do fora de jogo e, sobretudo, que não baixem à quarta divisão, com a Somália ou a Etiópia ou, pior ainda, ao Inferno.
Publicado na edição de fim-de-semana do i, 20-21 de Outubro de 2012, Loja de Porcelana.