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Ainda ontem, no Público de hoje
Desmorrer
Por Miguel Esteves Cardoso
Desta vez, a Maria João teve sorte. Nunca tinha visto uma médica a chorar. Foi a Maria João que puxou as lágrimas, quando a Dra. Teresa Ferreira lhe disse que não havia mais metástases dentro dela. Ficámos os três a chorar e a olhar para os outros olhos a chorar.
A minha amada já tinha esquecido o futuro. Já não queria saber da casa nova, do tecido para forrar os sofás, do Verão seguinte. Estava convencida que estava cheia de metástases. Doía-lhe o corpo todo. Tinha desanimado. Estava preparada para a morte. Só a morte é mais triste. Tinha-se preparado para ouvir o que já sabia, para não se assustar quando lhe dissessem que o cancro na mama tinha voltado e que se tinha espalhado por toda a parte.
Depois - mas não logo, porque não é de momento para o outro que se desmorre - voltou a ver vida pela frente. Reapareceu um horizonte e um caminho até lá, com passos para dar. "São tão raras as boas notícias", disse a médica, "e é tão bom dá-las, vocês não imaginam". Nós não imaginámos. Começámos a chorar. As lágrimas ajudam muito. As dos outros especialmente. Chorar sozinho não tem o mesmo efeito. A Maria João tem chorado por razões tristes. Desta vez estava a chorar de felicidade.
Como chora cada vez que ouve ou lê palavras doces, a dar força, a partilhar a dor, a juntar-se para que ela saiba que há muita gente a sofrer com ela, tal é a vontade delas que ela não sofra. Ou sofra pouco. Embora isto de se ficar vivo também se estranhe um bocadinho.
Na cena II do segundo acto da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, Julieta, a única filha dos Capuleto, diz os célebres versos: «What’s in a name? that which we call a rose/ By any other name would smell as sweet». Os apelidos do casal de adolescentes apaixonados impedem a sua felicidade, daí o suspiro de Julieta, que assim indica não deixaria de estar apaixonada se o amado se chamasse Romeu (Espírito Santo) Silva. A ideia é a de que uma rosa não deixaria de o ser se tivesse outra designação. Vem isto a propósito do nome a dar ao novo casal franco-alemão que lidera os destinos da Europa. Merkozy era excelente. Soava a multinacional de congelados com contentores nos portos das principais cidades dos países do Sul da Europa. Já vi Merkollande, HoMer, que adoro, mas que é demasiado erudito, e até Merde, seguramente escolhido por anti-europeístas radicais. Parece que gosto de Merllande. É arrastado, por isso eloquente desta alegada nova vida europeia. O que há em Merllande? O mesmo, mas com um nome pior.
Publicado na Tabu, Cinco Sentidos, 25-5-12
Gosto do serviço público de rádio e televisão. Gosto do conceito de serviço público. Acredito, aliás, que uma noção sólida do que interessa ao mais variado tipo de público é essencial ao êxito de cada canal, publicação ou site. Deve ser um desafio organizar a programação da RTP, que precisa de chegar a toda a gente. Até a pessoas como eu, que quase nunca suportam um programa (que não seja um episódio de uma série) até ao fim. Uma solução para captar um público, digamos, nervoso estará em fazer programas mais curtos. Outra solução está de certeza na muito boa qualidade dos mesmos, mais difícil de descrever aqui. Aconteceu ficar a ver a estreia de O Tempo e o Modo, da autoria de Graça Castanheira, que reúne estas duas qualidades. Trata-se de uma série de dez conversas de trinta minutos com personalidades diversas. O escritor uruguaio Eduardo Galeano foi a primeira a deixar o seu testemunho sobre a nossa história comum. A música e performer Laurie Anderson foi a segunda. À quinta-feira, às 23h30, na RTP 2.
Publicado na Tabu, Cinco Sentidos, 25-5-12
Drive (estupidamente violento).
Grace Kelly
... isto que temos agora não é bem uma Primavera, nem é sequer ainda um Verão. É uma fase climática indefinida e transitória que se caracteriza por um céu de nuvens escuras e o sol a espreitar de vez em quando. Os pólenes andam loucos. Esta é aquela fase do ano em que a Natureza faz a sua limpeza anual numa parte do hemisfério: sacode os tapetes, abre as janelas e começa tudo outra vez. É mais um reinício; mais uma alergia.
Sou espectadora do programa Olhos nos Olhos, na TVI24, com Judite de Sousa e Medina Carreira. Gosto da impaciência de Medina Carreira; gosto de quando agarra nos óculos com aquele ar de quem tem vontade de largar tudo, apanhar um táxi para o aeroporto e comprar um bilhete só de ida para outro sítio qualquer, menos a Grécia, a Irlanda, a Espanha, a Itália, ah!, e a França. Gosto do vocativo à antiga que dedica a Judite de Sousa: “Ó filha, a Alemanha...”. Faz parte da representação cúmplice. Ele é inquieto e resmungão; ela amua, faz beicinho e exige respostas concretas, que não temos o dia todo para estar aqui, sôtor. Quase todas as semanas, há um convidado no programa. Na segunda, foi a vez de Maria do Carmo Vieira, professora do ensino secundário em Lisboa. As ideias que tínhamos a respeito do ambiente generalizado de negligência no ensino e de falta de respeito por professores e alunos foram confirmadas por Maria do Carmo Vieira, que esclareceu que ainda nada mudou nos programas curriculares. Mesmo a tristemente famosa TLEBS, uma reforma exótica da nomenclatura gramatical do Português, parece não ter desaparecido para sempre. Infelizmente desaparecidas do currículo escolar estão as linguas clássicas, o Grego e o Latim, entendidas como “mortas”, mas que estão bem vivas na nossa língua. Maria do Carmo Vieira explicou que um professor de Português pode nunca chegar a ter aulas de Latim ou de Literatura Portuguesa. O Grego antigo quase nem existe. Foi um instante até se chegar ao discurso pavoroso da falta de utilidade das Humanidades. Por mim, acabava com mais de metade dos cursos de Economia e Gestão. Ó filhos, basta olhar para o País para percebermos que não funcionam.
Publicado hoje no Metro.
Along the Nile
Watch the sun rise
On a tropic isle
Just remember darling
All the while
You belong to me
Como ela está
Por Miguel Esteves Cardoso
Como está a Maria João? É a pergunta que mais me fazem. Há leitoras que ficam preocupadas ou zangadas quando não falo dela numa destas crónicas. Fale do que falar, estou sempre a falar dela. Faço tudo para falar doutra coisa, por causa dela, para não ser despedido por ser um chato e depois ficar sem dinheiro para tomar conta dela.
Vamos estabelecer um código. Se eu não falar da Maria João é porque ela não está a sofrer, senão de medo. Está bem. Até pode estar a pensar que vai ter sorte. Ri-se, chora e toma tanto conta de mim como eu dela. Faz as coisas que sempre fez só que às vezes, como disse ontem quando, em vez de jantar, lanchou chá, pão alentejano e queijos franceses de leite cru, "faço as coisas como se fosse morrer amanhã".
Isto porque, após duas semanas de pastéis de nata em série, em vez de continuar a emagrecer, desmagreceu dois quilos. Está sete quilos abaixo do peso ideal - é quando começa a sentir que está gorda. É um bom sinal. Infelizmente, quanto mais lhe dizem que está magra de mais, mais alegra. É a técnica dela de ficar magrinha: achar-se gorda. Eu também uso a mesma técnica mas comigo não funciona.
No fim deste mês saberemos se ela tem ou não outros tumores cancerosos. Torcemos para que não tenha. Depois, conforme os resultados, começarão outros tratamentos. É tudo uma questão de paciência, entrega aos especialistas e de uma mistura de sabedoria e de sorte. Seja qual for o nome que nós lhe dermos. Deus? Vocês?
"The good-enough mother starts off with an almost complete adaptation to her infant's needs, and as time proceeds she adapts less and less completely, gradually, according to the infant's growing ability to deal with her failure." Donald Winnicott, 1953
* Ou a que se refere o título 'Are You Mom Enough?'.
O motivo por que me referi à capa da Time como 'pornográfica' está à vista, mas passo a explicar. A única intenção da revista é chocar o leitor, fazendo com que olhe apenas para uma parte da fotografia, sem dar espaço a qualquer ambiguidade. Ou seja, que a compre para ver o que é aquilo. Não há na imagem nenhuma alusão ao afecto, à ligação profunda entre a mãe e um filho: é tudo bruto e frio, com a mulher reduzida à mama; útil na sua função de amamentadora eterna. Isto é tão Little Britain...
Está um artigo no Guardian em defesa da Attachment Parenting, em que se desfaz um pouco a má impressão criada pela capa. A questão dos laços criados entre a mãe e o filho nos primeiros tempos de vida é um tema importante em Temos de falar sobre Kevin, de que falei na semana passada. Fica-se com a ideia (errada, no meu entender) de a ausência de ligação à mãe ter provocado o horror. Há necessariamente uma objecção a fazer neste caso: a maioria das crianças rejeitadas pela mãe não são psicopatas assassinos. O filme tem, além do mais, a vantagem de fazer pensar nesta distinção importante: uma mulher não tem culpa de ter uma depressão pós-parto, não tem culpa de não desejar o bebé que acabou de ter (é terrível, mas acontece), mas tem uma responsabilidade quando escolhe dormir todas as noites com o filho: a Attachment Parenting é uma escolha.
Para quem pensa que o problema é novo, informo de que a conversa sobre amamentação tem pelo menos dois mil anos.