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Anna Karina
... lembro-me há uns anos de pensar e dizer a uma pessoa que só era possível imitar o que era mau, pois o que é bom não é imitável. É fácil imitar os maus sentimentos, por exemplo, que são como materiais inflamáveis. Sabia que era assim, mas até há pouco não tinha uma explicação sobre o tema. No livro X, da República, Sócrates diz que a alma se divide em duas partes, uma racional e outra, terrível, irascível ou irritável. É com esta segunda parte que temos de ter cuidado, diz ele, porque a multidão compreende e gosta de ver o 'carácter arrebatado e variado' (605a), mas nunca perceberia a imitação do 'carácter sensato e calmo, sempre igual a si mesmo' (604d). Ou seja, há na parte pior da alma muito 'material' para imitar, ao passo que no lado melhor, só há sensatez e calma, cuja imitação causaria sobretudo 'sofrimento' a quem ouve ou vê. E sofrimento porque é difícil para a multidão compreender ou recordar o que é sensato e calmo se a maioria tem a alma doente e poluída de raiva. A minha ideia inicial não está inteiramente certa. Platão diz que é possível imitar a sensatez. Mas só se quem imitar (poeta) e quem assistir à imitação (espectador) for igualmente sensato. Ora, como sabemos, há muito menos sensatos do que irados, o que explica imensa coisa.