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Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Álvaro de Campos
Ler em voz alta não é uma prática comum nos nossos dias. Quase ninguém o faz, ainda menos na presença de outras pessoas. Marco a diferença porque não faço ideia se passa pela cabeça de alguém ler em voz alta certas passagens de textos para tentar imaginar a que soam e se assim se percebe melhor o que está escrito. Ou se lê em voz alta a uma criança ou a um velho que deixou de ver. Em público, a experiência, quando acontece, tem os profissionais da leitura de poesia ou os actores a tomar conta do assunto. Parece que é coisa séria, de difícil execução, um acontecimento que obedece a uma formalidade solene.
Há razões para associarmos a solenidade à leitura de textos em voz alta. Stephen Greenblatt, em A Grande Mudança, fala das regras observadas pelos monges beneditinos ao longo de séculos. A leitura das Escrituras era essencial à vida monástica como forma de combater a ociosidade. Greenblatt refere que até ao século VI, quando São Bento determinou que a leitura diária era obrigatória, “a leitura era, regra geral, feita em voz alta”. O monge que se recusasse a ler ou que se revelasse preguiçoso ou distraído era castigado com advertências à frente dos outros. Se persistisse na falha, era corrigido com o chicote. As leituras em voz alta aconteciam todos os dias às refeições. Era pedido a Deus que o leitor não caísse na soberba, um risco desagradável que correm os que ouvem assim a sua própria voz, e o silêncio era imposto a quem ouvia para evitar troças e conversas inúteis. Mais importante, perguntas e discussões estavam proibidas. Aquela não era uma comunidade intelectual.
Não é que a leitura em voz alta tenha desaparecido para dar lugar ao debate, mas não é disparatado pensar que, na maioria dos casos, não são compatíveis. Ninguém faz perguntas em sessões de leitura de poesia nem interrompe uma peça de teatro. Também ninguém fez perguntas há dias na primeira sessão do ciclo Poesia no Museu, imaginado e organizado por Helena Miranda e Sebastião Belfort Cerqueira para o Museu da Música, um lugar inesperadamente bonito e acolhedor na estação de Metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa. A primeira sessão foi protagonizada por Jorge Uribe, sob o título Campos de Antemanhã, sobre a poesia de Fernando Pessoa.
Minto. Houve uma pergunta: qual era a data da Ode Triunfal lida ao longo de 13 minutos pelo Sebastião, rangendo os dentes, eh-lá intenso e sem dramas. Não é exagerado afirmar que foi uma leitura perfeita. A Susana Simões e eu fomos as outras duas leitoras de serviço. O seu Opiário trouxe à nossa presença um Álvaro de Campos tal como o imagino, cínico e gozão. Li três Campos e três Caeiros. Estava nervosa, mas o meu coração não batia mais depressa por causa da falta de experiência. Foi aquele ambiente solene, espiritual, que me comoveu. Como se a leitura em voz alta fosse uma maneira de partilhar a alegria de fazer parte de qualquer coisa maior do que cada um de nós, e que nos une, quem sabe se além da morte: a poesia, um amor em comum.
A próxima sessão tem lugar no Museu da Música, dia 21 de Novembro, às 19h. João Figueiredo (Professor) e Luís de Camões (Poeta). Não se pode perder.
Publicado no i, Loja de Porcelana, edição de 3-4 de Novembro de 2012.