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- A explicação pragmática era aquela que observamos ainda hoje. Os recuperados da febre tifóide ficavam imunes (vou ter de consultar um especialista para perceber como, uma vez que se trata de uma bactéria e não de um vírus), e por isso podiam aproximar-se dos doentes e cuidar deles. Mas, segundo percebo, esta imunidade não dura muito e houve um novo surto da dita peste três anos depois, em 427 a.C. Voltando à aproximação, que seria fatal para alguém saudável, também não se observava no caso dos predadores e aves de rapina. Os abutres desapareceram de Atenas.
- Ontem acordei tarde porque dormi 11 horas seguidas e hoje para lá caminharia se não fosse o sempre agradável som de um martelo pneumático na minha cabeça de uma obra que não parou (e ainda bem). Há quem tenha insónias e há quem hiberne. Ambas são formas de lidar com isto (não sei bem caracterizar).
. Lembrei-me da Peste de Atenas, em 430 a.C., e fui ler o relato de Tucídides. A descrição na História da Guerra do Peloponeso é impressionante. Fiz algumas pesquisas para perceber o que terá sido (parecia ébola, por causa das hemorragias) e, ao que tudo indica, foi o primeiro surto de febre tifóide, vinda do Egipto e espalhada a partir do Pireu. Terá poupado o Peloponeso e dizimado Atenas. O dilema colocava-se entre tratar os doentes e ficar infectado ou não se aproximar e deixar morrer quem padecia da doença. Os recuperados eram os que conseguiam tratar os enfermos. Tucídides diz que as causas para este comportamento foram éticas e morais. Os recuperados tinham a experiência do sofrimento e por isso queriam ajudar os que sofriam. A explicação, porém, seria mais pragmática.
- Um dos perigos do tempo mal empregue é cair na tentação de ver má ficção. Já tive a minha dose com a série Freud, da Netflix. Ainda assim, tem momentos. De resto, Freud é tão Freud (a começar pela beleza do actor Robert Finster) como Fleur Salomé é Lou Andreas-Salomé. Vão antes ao Google Images e não vejam a série.
- Gosto mais de escrever de manhã e o mais cedo possível. Mas hoje acordei à hora do almoço e esta hora já é tardia e agora, em vez do pequeno-almoço, vou almoçar. Fica para amanhã.
- Li e reli a homilia de ontem do Papa Francisco, numa Praça de São Pedro quase tão vazia como aquela em que estive há cerca de dois anos às seis da manhã. As imagens comoveram crentes e não crentes, mas são as palavras que mais contam, tão perfeitamente adequadas ao momento avassalador que vivemos. Obrigada ao Papa Francisco por me fazer pensar na diferença entre optimismo e fé. Aqui fica um excerto desta homilia histórica.
"«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» O início da fé é reconhecer-se necessitado de salvação. Não somos autossuficientes, sozinhos afundamos: precisamos do Senhor como os antigos navegadores, das estrelas. Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confiemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida não morre jamais."
- Em momentos especialmente difíceis como este, mentir parece ser inevitável. E tudo começa com a mentira do "vai ficar tudo bem" da qual a mentira de António Costa "até agora não faltou nada [nos hospitais públicos] e não é previsível que venha a faltar" é prima. Não seria tão dura a qualificar as palavras de Costa como sendo uma mentira clássica. É mais uma mentira da família do wishful thinking, tão perigosa como outras. Não estou a dizer que não podemos ter esperança. Digo apenas que a esperança se deve basear na verdade. E a verdade, neste momento, está nas mãos de poucas pessoas. Só isso assusta e serve para alimentar a desconfiança. Por isso é tão importante não ceder à tentação de confortar o povo com a frivolidade do optimismo. (Agora se vê como o optimismo serve para aqueles tempos em que nada de muito especial se passa, Brexit incluído.)
- Entretanto, a carta de Nuno Carvalho a Siza Vieira surtiu efeito. Apesar dos ataques e dos insultos de que foi alvo, ainda bem que falou. Houve, claro, muitos que disseram que devia ter ficado calado. Em Portugal, não há pandemia que suspenda a tradição de mandar calar.
- De todos os vídeos maravilhosos que andam a circular no WhatsApp, este de Vincenzo de Luca, governador da Campanha, é o meu preferido. Ai querem organizar uma festa de fim de curso? Nada como uma cargazinha policial com lança-chamas para fazer dispersar os inconscientes.
- Ontem à noite aconteceu uma coisa insólita no Twitter. Começaram a circular tweets do deputado socialista Ascenso Simões em que insultava duas mulheres com o recurso àquela linguagem típica de quem se encontra no grupo de risco principal do coronavírus. Pouco depois do pandemónio, surgiu uma conta de um Ascenso Simões alegadamente verdadeiro a alertar as pessoas para a outra conta de um alegadamente falso Ascenso Simões que andava por aí a insultar perfis de mulheres (a dada altura pareceu-me que o deputado - nesta altura, alegadamente - punha em causa o género das interlocutoras, achando que assim estava tudo bem). A conta pedia que a outra fosse denunciada. Depois disto, rapidamente começaram a circular tweets que contradiziam a tese da conta alegadamente verdadeira. Afinal, o verdadeiro Ascenso Simões era aquele primeiro, que já tinha estado na origem de várias polémicas. Entretanto, a conta alegadamente falsa foi temporariamente suspensa (impedindo o autor de reagir), e o autor da outra recente não resistiu a fazer um tweet em que confirmava esta tese. Aprendam com o PS, que eles, se o eleitorado quiser, não duram sempre.
- Há quem acredite, na sua ingenuidade e eterno espírito de tanso, que o momento não é para o combate político. Nem Marcelo, nem Costa nem ninguém neste momento que perceba o que está em causa pensa assim. A união é importante, claro, e o debate, a discordância, o conflito de ideias, a crítica são igualmente importantes. Só num país em que "discordar" é sinónimo de "boicotar" podemos ver tantos cuidados com a liberdade de expressão num momento em que combater - ou seja, falar, discutir, pensar - é mais do que nunca necessário.
- Através dos resultados de uma sondagem publicada ontem, percebemos que a queda na popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa não coincide com uma subida na popularidade de André Ventura. Pelo contrário, André Ventura cai também. Ora, isto é extremamente interessante (para quem se interessa por estes assuntos), porque revela que 1) as pessoas não são estúpidas, e não vão a correr para os braços de um oportunista porque o Presidente se portou mal nesta crise; 2) há quem insista muito na tese de que criticar Marcelo é dar pontos a Ventura. Qual é objectivo? (Não sei bem se isto é uma pergunta.)
- Entretanto, a carta de Nuno Carvalho, da Padaria Portuguesa, ao Ministro Siza Vieira, parece ter surtido efeitos, ao contrário do que aconteceu às centenas de idiotas que ontem mostraram no Twitter que estão mais preocupados com o que alguns conquistaram do que com aquilo que todos têm a perder.
- Noto uma redução na partilha de vídeos divertidos e imagens engraçadas no WhatsApp. Faz-me pensar que não só eu que às vezes não me apetece ver séries de comédia nem nada que me faça rir. Depois a vontade volta.
- Faço parte daquele grupo de pessoas que não precisa de ser aconselhado a ficar em casa. O isolamento social, o distanciamento social, nada disso me assusta nem perturba. Mas fora este aspecto que muitos vêem como um convite ao tédio, tenho as mesmas preocupações do que toda a gente. Ontem experimentei uma delas, porque achei que era a minha vez de ir ao supermercado. Lá me pus a caminho, cinco minutos a pé em ruas estreitas onde nunca vejo gente. Passaram três rapazes, calados e afastados uns dos outros, um homem a correr, uma mulher parada no meio da estrada a olhar fixamente para o telemóvel. Entrei no centro comercial, com as luzes meio apagadas. As portas já estavam abertas para evitar serem empurradas com o pé. À entrada, ninguém a não ser um cheiro intenso a álcool. Todas as lojas estavam fechadas com o estore corrido para baixo, algumas ainda com avisos colados nas montras que não conseguia ler. Era como se tivesse entrado no centro às cinco da manhã, se alguma vez foi possível fazê-lo. Ao fundo, poucas pessoas, mas demasiado juntas numa fila para entrar no supermercado. Lá dentro, o silêncio dos zombies a pesar fruta para enganar o tempo. Não, o inferno não é estar em casa. O inferno é ver a desgraça instalada de um dia para o outro. Se calhar esteve lá sempre, à espera de um acontecimento súbito e avassalador que nos mostrasse afinal como é.
- Por uma daquelas coincidências que uma expressão conhecida e mal citada não explica, no artigo de hoje, Miguel Esteves Cardoso fala sobre fake news, o tema sobre o qual pensei escrever aqui neste terceiro dia de estado de emergência. Fala sobre as causas da propagação das fake news: os viciados em atenção esperam influenciar os outros com a mentira; uma droga poderosa porque somos todos mentirosos e, por isso, todos desconfiados. Ontem, depois de receber pela vigésima vez a recomendação falsa sobre os benefícios de beber água morna e sal ou limão - devo dizer que à primeira caí que nem uma patinha, mas tive o bom senso de não partilhar -, e perante um comentário simpático de alguém que respondeu "mal não faz", desatei a correr no WhatsApp com a espingarda encostada ao peito. "Qual é o mal?", é a pergunta a que temos de responder. E o mal não é beber um chá de limão, nem bochechar com água morna e sal (para cicatrizar algum problema nas gengivas, e por recomendação do dentista). O mal é a mentira, podemos afirmar sem mais demoras. Mas porque é que a mentira é o mal, pergunta Cálicles. Porque a mentira relaxa as pessoas, filho, indo ao encontro precisamente do descanso por que tanto anseiam. Fá-las pensar que o bicho se mata com shots de vodka ou bicarbonato de sódio e depois esquecem-se de lavar as mãos. Keep calm e desliguem as notificações.
- Ainda sobre "o vício da atenção", é bastante evidente que estamos muito mais presentes nas redes sociais. Basta ver este blogue, deixado ao abandono em tempos de paz, que ganhou nova vida na pandemia. Estamos todos, mesmo os que não usam a mentira como engodo, a aproveitar-nos desta situação única de termos o público fechado e entediado em casa. Como padres que fecham a porta da igreja com recém-chegados lá dentro na esperança de os converterem.
- Entretanto, Stephen Sondheim fez também ontem 90 anos. Espero que esteja fechado em casa há pelo menos um mês, a escrever um musical... ou a descansar. Happy birthday Mr. Sondheim!
- Fiquei a pensar se estarei a ser demasiado inflexível em certas questões, agindo, enfim, como é meu hábito. Depressa (resta saber se bem) concluí que não. Estamos a viver um momento difícil, e é nestes momentos que aquilo que já sabíamos - sabemos sempre, podemos é achar que o mais prudente é não prestar atenção - fica, por assim dizer, mais à vista. A pandemia funciona como o vinho. Ninguém se torna violento por beber, assim como ninguém se torna cobarde no combate. Isto significa que a) estamos dispostos a mentir a nós mesmos (se é que tal coisa é possível) por um bem maior e b) acredito que o carácter é qualquer coisa estanque, que se esconde ou revela perante as circunstâncias. Sobre b) admito vir a mudar de ideias, uma vez que a quarentena só agora começou.
- Admito que parte de mim, como as mãos que mantenho lavadas e desinfectadas, gostou da notícia de o presidente do CDS se voluntariar para ajudar as Forças Armadas. Depois tive de me lembrar que ainda não estamos em guerra.
- Sob o pretexto aparentemente inócuo de celebrar o Dia Mundial da Poesia, fomos confrontados com poemas "sobre o vírus" de Manuel Alegre, José Jorge Letria e Maria Teresa Horta. Apanhados de surpresa, os portugueses e estrangeiros residentes em Portugal não tiveram como escapar ao surto. Atenção que em Espanha aconteceu o mesmo. Como na economia, penso que as consequências de tudo isto podem vir a ser realmente nefastas.
- Para não ficarmos assim, deixo a sugestão da Forma de Vida para o dia de ontem. Ainda vamos a tempo.
- Escrevi para o Ponto SJ sobre algumas reacções, muito boas e menos boas, a esta nova realidade pandémica que nos desafia a sermos melhores. Na bolsa dos comportamentos, há já quem caia a pique e quem ganhe pontos. Nada como um acontecimento avassalador - e repentino - para nos pôr à prova. Temos o campo aberto para a prática das virtudes, apesar da condicionante única de termos de viver à distância.
- Médicos, enfermeiros, cozinheiros, homens e mulheres que trabalham diariamente na recolha do lixo, caixas de supermercado, jornalistas, técnicos e todas as pessoas que estão a trabalhar neste momento "no terreno", fora de casa, para o resto da população poder estar recolhida, estão nas melhores condições para a prática das virtudes. Mas como vamos poder ser corajosos à distância, temperados à distância, magnânimes à distância? Há exemplos curiosos nas varandas de Nápoles, num país em que o vírus parece ter matado mais do que na China.
- É importante perceber por que razão a taxa de mortalidade é tão alta em Itália. Este artigo no Telegraph dá algumas explicações importantes. Também sobre a forma de combater a disseminação do vírus, gostei de ler este artigo na Atlantic.
- Entretanto, apareceram algumas fake news alegres, como as notícias sobre golfinhos nos canais límpidos de Veneza. É falso, mas ao menos é bem disposto.