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por Carla Hilário Quevedo, em 03.12.05
Ilustração

Desde as nove

Meia-noite e meia. O tempo passou depressa
desde as nove, quando acendi a luz,
e me sentei aqui. Sentei-me sem ler
e sem falar. Com quem poderia falar
completamente sozinho nesta casa.

A visão do meu corpo jovem,
desde as nove, quando acendi a luz,
veio e encontrou-me e lembrou-me
de quartos fechados perfumados,
e do prazer passado há muito - que prazer ousado!
E também me trouxe perante os meus olhos
caminhos que agora se tornaram irreconhecíveis,
centros cheios de movimento que acabaram,
e teatros e cafés que foram uma vez.

A visão do meu corpo jovem
veio e trouxe-me também as tristezas;
pesares de família, separações,
sentimentos de entes queridos, sentimentos
dos mortos tão pouco estimados.

Meia-noite e meia. Como passou o tempo.
Meia-noite e meia. Como passaram os anos.

Konstandinos Kavafis, 1918
Tradução de Carla Hilário Quevedo

O prazer da memória recuperada em imagens pouco definidas parece importar mais do que a memória em si. Os episódios vividos deixaram de existir, restando deles apenas uma ilusão. Neste sentido, não é a memória que parece ser o mais importante, mas a ilusão das recordações; ou seja, uma construção artificial que serve de material à poesia, à arte. Desde as nove até à meia-noite e meia, numa casa, na mais completa solidão as lembranças muito ténues do passado sucedem-se com dificuldade. O lamento da brevidade da passagem do tempo não parece simplesmente servir de queixume pela perda da juventude. O lamento é possível através de uma ligação entre o passado e o presente, fornecida pela memória, mas existente por causa do eros, o elemento que, na verdade, liga os dois tempos e que permite a ilusão desejada do passado.

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publicado às 12:05